Esbrangente
Que diabo é essa palavra? Um dia, Badia precisava dizer algo além de abrangente, que foisse mais para a frente, que atingisse um tanto de légua adiante. Então soltou: "esbrangente"!
Não era a primeira vez que nos dizia uma palavra nova, uma expressão curtida no tempo do sertão. Como todas as outras vezes, paramos tudo e pedimos para repetir. Pois lá veio a tal. E lembrei-me de uma frase do poeta Manoel de Barros: "Não gosto de palavra acostumada".
Então percebemos: este era o espírito de nosso encontro. Era o momento de juntar tudo: as músicas, causos e sapateados que vinhamos trabalhando, cada um em seu canto.
Roberto esmiuçou o mundo caipira, foi fundo na viola e na música das duplas. Badia representa toda a riqueza de nossos mestres. eu corri para o sertão, procurando viver suas histórias. Fomos nos complementando, palpitando, apurando o ponteado.
Nesse trabalho homenageamos as duplas caipiras, com suas modas, pagodes e humor. Recorremos aos clássicos e aos poetas da roça, ponteando do nosso jeito, mas no rumo de quem admiramos. Juntamos à tradição nossa busca pelas novidades e a aposta no instrumento que nos acolheu.
A viola caipira, de dez cordas, também é conhecida por viola brasileira, viola de arame. É um instrumento que chegou ao nosso país nas mãos dos colonos e jesuítas, correu o sertão e, do jeito que foi se embrenhando em nossa terra e nossa história, podemos dizer que é o principal porta-voz do homem do campo brasileiro. Escutando o som da viola caipira, podemos sentir o cheiro do café passado no coador de pano, acompanhar o vôo de um tanto de passarinho diferente.
A viola de cocho, ah, quanto prazer em pontear. Sabemos que é um instrumento encontrado apenas no Pantanal Mato-Grossense, os índios da região dizem que tem um som gotejante. Possui dois ou três trastes, as que usamos têm apenas dois, o primeiro de um tom e o segundo de meio-tom. No restante do braço, é preciso campear as notas. As cordas são feitas de tripas de macaco ou porco-espinho. Temos certeza de que é um instrumento que ainda vai dar muito o que falar. Estamos crescendo junto com ele, descobrindo suas possibilidades. Vê-los nas mãos dos cururueiros do Mato Grosso é uma experiência fantástica.
A viola caipira e o cocho são esbrangentes.
Sabendo que era preciso cutucar o homem um pouco mais, pedi outra vertente ao significado da palavra, e Badia veio com este exemplo: "Tem dois lotes, um vizinho do outro, e não é possível pedir para o agrimensor medir. Então chama o vizinho, vai com ele até o lote e faz por conta própria. Com o muro pronto, o agrimensor aparece tempos depois e mede. Aí, se meu lote entrou dentro do vizinho, ele diz assim: a sua divisa abrangiu tantos centímetros dentro da outra. Isso é abrangir. Esbrangir é outra coisa, é notícia. Se diz assim: a notícia esbrangiu no mundo todo, pois o povo é doido pelas novidades".
Taí, abrangimos os nossos mundos, um invadindo o terreno do outro.
O que queremos agora é esbrangir. O senhor e a senhora façam o favor de correr aqui dentro do CD, com certeza vão reconhecer um tanto de serra, vereda e sentimento. Vem logo, vem! Para que possamos recriar, juntos, o tanto de sertão que vige dentro da gente.
Paulo Freire
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Esbrangente Roberto Corrêa, Badia Medeiros, Paulo Freire Vai Ouvindo, 2003
Pagode em Brasília Teddy Vieira - Lourival dos Santos
Mazurca do Viajor Roberto Corrêa
Peleja de Siriema com Cobra Roberto Corrêa
O Causo do Angelino Paulo Freire Chuva Fininha Roberto Corrêa
Tristezas do Jeca Angelino de Oliveira
Manuelzão Paulo Freire
Inhuma do Badia Badia Medeiros
Quase Verdade Badia Medeiros
Lagartixa tradicional - adaptação Paulo Freire
Viola Cor de Vinho João Pacífico Cor de Saudade Paulo Freire
Benzim tradicional - adaptação Roberto Corrêa
Antiqüera Roberto Corrêa
Rio Abaixo Paulo Freire - Manoel de Oliveira
Fogo na Macega Badia Medeiros
Viola Quebrada Mário de Andrade
Siriema Nhô Pai - Mário Zan
Desembolada tradicional - adaptação Badia Medeiros
Recorte do Velhote Roberto Corrêa
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